(Edição 19) Destaque: Kebra, Festival de Cultura Hip Hop

Uma entrevista com a Ayesca Mayara feito por Monique Murad (Versão Original em Português)

Fotografia: @wgnoclick


“Hip-hop não é só um estilo de dança, nem só um estilo musical. Hip-hop é uma cultura de política. Uma cultura de política favelada, que busca, que tem sua moda, que tem seu black money, que tem todas as suas questões de se auto ajudar. Ser hip-hop é buscar conhecimento, buscar informação e pensar em coletivo. Ser hip-hop é abranger todas as formas e expressões artísticas. É muito mais sobre comunidade e movimento do que realmente um estilo musical. Então a gente fidelizou o festival de hip-hop, mas muito pensando em tudo que a SEJA realiza como coletivo. E aí surgiu o Kebra.”

Quando foi a última vez que você olhou para um palco, e se espelhou lá? Pensando, “se aquela pessoa consegue, eu também posso”?  

Sabemos que quanto mais alto você estiver na escala do privilégio, mais próximo estará desse palco, ou pelo menos ao ponto de poder ver as pessoas nela como pontos de referência para a sua vida. 

Então o que acontece quando você democratiza a visibilidade, o acesso, e o poder de uma comunidade que acredita e investe em você? 

O festival Kebra parecia um portal para como seria o mundo quando a gente elimina essas desigualdades.

O festival de Hip Hop Kebra aconteceu na Fundição Progresso, nos dias 3 e 4 de Novembero de 2023, com o objetivo de empoderar jovens empreendedores e artistas, democratizando oportunidades para os artistas e profissionais da cena.

Kebra surgiu para celebrar a cultura do Hip-hop e promover transformação social por meio de batalhas de breaking (bboy, bgirl),  dança hip-hop e MCs, slams, vogue, apresentações musicais e teatrais, oficinas de dança, e muito mais. 

Kebra nasceu de uma organização chamada SEJA – uma ONG que acredita no poder da cultura e das lideranças locais e comunitárias como a chave para eliminar as desigualdades. Em conversa com a Ayesca Mayara, Gerente de Projetos Culturais da SEJA, e MC do Kebra, falamos sobre o que Kebra significava para ela, para a sua comunidade, e o papel do Hip-hop na kebra dessas desigualdades sistêmicas.

Qual foi o propósito do festival?

O intuito foi dar visibilidade ao freestyling.

Os grandes dançarinos e MCs de freestyle não têm mercado de trabalho. A galera que tá lá no palco com a Anitta, com a Ludmilla, são o povo dos estúdios coreográficos, é o povo que é rapper, mas só escreve e compõe música – os grandes palcos não tem espaço para o freestyle.

E a gente na SEJA, desde quando a gente começou a Community Battle, queria trazer esse espaço. E o único caminho que a gente consegue é através das batalhas, deixando elas mais rentáveis para esses competidores, trazendo visibilidade através dessas batalhas. 

Então a gente fez o festival trazendo essa ideia das batalhas de freestyle como entretenimento pra gente conseguir recursos para eles mesmos e mostrar que ver uma batalha de dança é igual a ver um show de grande artista, porque é incrível, sabe? 

Para ver o cara girando de cabeça e lutando por uma grana, por uma oportunidade.

Com o festival a gente traz esse processo de fazer o freestyle ser rentável. As finais das batalhas são uma grande atração. Cada um percorreu o ano todo para estar ali.

Outra coisa que eu acho muito importante do Festival Kebra, foi o processo do patrocínio. Em 2019, a gente veio fazendo as batalhas de coração. Conseguindo o máximo de dinheiro que deu pra gente dar premiações e para incentivar a galera também. Mas agora, o festival focou em dar de prêmio patrocínio mensal, justamente por conta desse cuidado com o artista – de ele entender esse dinheiro como uma oportunidade de uma renda fixa, durante um ano, para ele realmente produzir dança. Para ele não ter que ir para o metrô dançar todo dia, sabendo que ele vai ter esse dinheiro para pagar o aluguel. Para realmente conseguir dançar.

O que foi Kebra para você? 

Quando eu comecei na SEJA, eu ficava o tempo todo reafirmando comigo mesmo, falando cara, será que esse lugar é mesmo pra mim? 

Todo mundo externava as coisas pra mim, porque eu sou a pessoa da cena. E aí eu comecei a entender o quanto o meu trabalho era importante dentro da organização para deixar o trabalho mais humanizado – atingindo um processo de impacto real. Eu falo o tempo todo que a SEJA me tirou do metrô. E foi realmente isso. Eu trabalhava no metrô todos os dias, e só conseguia pagar o meu aluguel. Quando não dava, eu ia dançar na rua e passar o chapéuzinho. Isso é uma realidade de muitos artistas aqui no Rio de Janeiro e São Paulo no freestyle. 

Então dentro da SEJA, buscando e trazendo esses caminhos pra minha própria galera, com o fomento de ter uma ajuda, de estar direcionando esse dinheiro que SEJA conquista para eles, mano, falei: esse lugar sim é pra mim. 

Eu chorei muito quando o Kebra acabou, e chorei porque? Foi esse festival que fez a gente acreditar num grande sonho. 

A Agência Ruua, que deu o apoio de produção do evento, com todo esse conhecimento deles de evento, fez a gente acreditar também. Eles falavam tem gente que tá fazendo muito menos que vocês, por nada, só por dinheiro, usando a cultura, e vocês fazem realmente pela cultura, pela cena. Vamos fazer isso grande.

Foi o início de um caminho do que eu realmente quero fazer. Pra quem eu realmente quero fazer. Que é pra nossa galera.  É o real hip-hop.

Hip-hop não é só um estilo de dança, nem só um estilo musical. Não, hip-hop é uma cultura de política. Uma cultura de política favelada, que busca, que tem sua moda, que tem seu black money, que tem todas as suas questões de se auto ajudar. Ser hip hop é buscar conhecimento, buscar informação e pensar em coletivo. Ser hip hop é abranger todas as formas e expressões artísticas. É muito mais sobre comunidade e movimento do que realmente um estilo musical. Então a gente fidelizou o festival de hip-hop, mas muito pensando em tudo que a SEJA realiza como coletivo. E aí surgiu o Kebra.

Quais foram os momentos no Festival que mais te impactaram? 

Teve alguns momentos que me impactaram construtivamente. Teve uma hora na batalha de MCs que a caixa deu ruim na hora que o cara estava mandando a rima dele, e a jurada falou que não votou nele, que não estava entendendo o que ele estava falando, e não conseguia votar corretamente. Eu senti a dor daquele MC porque o sonho dele foi prejudicado na nossa batalha. E aí, a gente vê que é sobre fazer de verdade, fazer correto, e é muito difícil. O cara do som, não vai entender que se um microfone der ruim na hora que o MC tiver mandando a rima, a rima dele vai perder total sentido no beat. Eu sou MC de freestyle, já batalhei muito antigamente, eu sei o quanto isso é importante.

Então, isso é uma coisa que eu sempre vou levar, que é importante pra gente que sabe da parada, sempre fazer as coisas certas. Não tem como alguém fazer uma batalha de break se ele não entender o mínimo que precisa colocar no chão pro b-boy não se machucar. E isso acontece de diversas formas, com pessoas tentando utilizar a nossa arte para se promover, mas não colocar a própria galera para desenvolver a coisa. Porque a gente entende as necessidades, porque é o nosso sonho, e a nossa dor.

 Outra coisa positiva, é que muita gente não acreditava que a SEJA poderia realizar uma batalha de MCs, mas a gente veio no circuito ao longo do ano inteiro fazendo batalha de MCs. Mas o que mais impactou também de fala, foi a união dos elementos, porque são duas cenas culturais muito separadas. Que é a dança e a rima. Que são gigantes.

E se a gente se unir, a gente vai ficar maior ainda. Tem mais de 180 rodas culturais pelo Rio de Janeiro inteiro que fazem batalhas de MC. E a dança tem mais de 27 grupos espalhados pelo Rio. Várias batalhas, vários treinos abertos pra galera conhecer o freestyle. Então se unir esses dois, a gente vai ser maior ainda e se fortalecer como comunidade. Um dos feedbacks mais incríveis que eu recebia era tipo, a galera da rima o tempo todo falando, “mano, cara, vocês fizeram muito foda, porque eu nunca vi uma batalha de dança.” E a galera ficava impactada com aquilo todo.

Outro momento foi de uma pessoa aleatória que só passou ali na Lapa, entrou no primeiro dia e foi no segundo e depois ela me puxou e falou vem cá, o que que tá acontecendo aqui? Eu vim ontem. Tinha uma muvuca de coisa legal, tinha gente cantando, dançando.

E aí eu realmente entendi o quanto isso é legal de entretenimento. Porque ela achou que os caras estavam cantando música deles, não achou que estavam rimando no freestyle da hora. E ela achou que os caras estavam apresentando uma coreografia, e a galera só dançando freestyle. O quanto isso é gigante e potente, sabe? 

Ela conheceu o mundo novo, divulgou nas redes sociais dela, então ajudou também na influência e vimos como ela também estava disposta a estar ali como comunidade. Ela falou, pega lá o salgado! Será que aquele menino está com fome? Vamos lá, eu frito pra ele! Então, o quanto é acolhedor também, o quanto as pessoas, quando conhecem a comunidade do freestyle, estão dispostas a fazer isso grande e ajudar a crescer.

Como foi o processo de captação de recursos para o evento, sendo que foi de graça? 

A gente apresentava o trabalho para as empresas e as empresas falavam não, isso não é para mim.

Eu falei, como assim? Como assim as empresas não se veem? E a gente não falava dança e hip-hop, a gente falava sobre transformação social, promoção da cultura. E as empresas ainda falavam que não era para eles. Mostrou o quanto o preconceito e racismo com a cultura hip-hop ainda tá enraizado em empresas de forma estrutural mesmo.  

Não só na captação, mas como também algumas pessoas vêm e divulgam o nosso trabalho. Ainda é muito difícil pra cultura periférica e favelada, pra cultura preta. MPB é tranquilo, samba tranquilo, agora,  porque eles fizeram um jeito de branquecer o samba. Samba, sim. Mas o hip-hop ainda não, porque a gente ainda tem essa resistência de lutar por todas as nossas origens mesmo.

Durante o governo Bolsonaro, proibiram a arte no vagão novamente. Eram só três anos que a gente estava legal lá dentro do vagão. Lutamos pelo novo governo para revogar essa lei aí, mas até hoje a gente não conseguiu. Fizemos de tudo.

Todos os dançarinos e todos os MCs que estavam no Kebra, todos eles vieram do vagão. Todos eles trabalhavam na rua fazendo freestyle. É o único caminho pro freestyle, sabe? Fazer freestyle é passar o chapeuzinho. Como comunidade, como que a gente muda isso se a gente tentou de todas as formas? Então é sempre mostrando a potência que a gente é, sabe? Vai sempre passar no jornal, fulano de tal foi assaltado, mas vai passar também um Festival Kebra grandão, artistas ganhando.

A gente tem que mostrar mais a potência da favela, porque no jornal a gente só vai ver a nossa cultura sendo marginalizada.

E quais são os planos para o ano que vem? 

Ano que vem a gente está muito motivada a acertar pequenos pontos que fazem muita diferença, pensando em pessoas e competidores mesmo. Mas ano que vem a gente quer realmente abranger tudo o que a gente pensou que ia esse ano, que são mais categorias de dança. A gente queria também trazer outras propostas de elementos, como mais uma categoria de batalha de grafite. A gente quer fazer realmente mais completo. Acho que foi um pontapé inicial, mas ano que vem a gente está muito esperançoso falando que a gente vai conseguir colocar todas as categorias de batalha das comunidades que estão envolvidas com a SEJA. 

A boa era pra ser uma competição mesmo. Igual todas as outras. Mas aí a gente teve que fazer no formato menor por conta de tempo e de dinheiro. 

Então, para ano que vem, mais acesso para tudo que a gente realiza, consertar as coisas que a gente passou esse ano, e mostrar isso para todo mundo – o que que Kebra é, qual é a nossa potencialidade. E trazer todo mundo pra conhecer esse mundo do freestyle. A gente quer que SEJA alcance mais pessoas, mais crianças, mais artistas.



Sobre Ayesca Mayara 

Ayesca Mayara Souza é a Gerente de Projetos Culturais na ONG SEJA e foi MC do Festival Kebra. Ela já participou de diversos espetáculos com o “passinho foda”. Com a companhia Passinho Carioca ela atuou no espetáculo “Resistência ” e o “Na Manhã”, e circulou pelo SESC Rio e também esteve no teatro municipal. Com a dança, ela já subiu em diversos palcos da vida desde apresentações no metro ao palco favela do Rock in Rio.

Projetos atuais incluem: ONG Tio Lino; SejaTV; SejaHubs; Batalha da Califórnia; Cypher Seja; Coletivos AsMarias.

Nascida em outubro de 1993, mora atualmente na favela do Vidigal porém atuante em todo o Rio de Janeiro com o passinho e o funk.


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